agora, tudo está sem brilho. baço. as paredes esburacadas. aqui e ali o estuque caiu e já se veem buracos. antes, era o brilho azul daqueles olhos que me faziam parar. sempre à mesmo hora. agora, sempre à mesma hora, paro na tentativa de vislumbrar os olhos brilhantes. azuis.
todos os dias, à mesma hora. ali. parada, estática, sem ação, silenciosa, na esperança de sentir aquele brilho, tão frio, e, ainda assim, tão humano.
era a hora de ir à casa da tia. mulher destemida que teimava em morar sozinha no palacete dos pais. eu, por outro lado, gostava de pensar que aquelas paredes eram a fronteira entre o mundo real e o mundo de festas, romance, princesas e príncipes que vivem sempre e extemporaneamente em casas grandes plenas de brilho e festas e gargalhadas ocas. até podiam ser palacetes. era indiferente.
de qualquer forma, para mim, tudo aquilo só existia porque aqueles olhos azuis brilhavam atrás dos vidros. brilhavam e eram azuis. tão azuis...
a tia contara-me que ali vivera um menino de poderes visionários. talvez fosse aquele cujos olhos eu via todos os dias quando ia a casa da tia. era um menino especial, dizia ela. tão especial que ao pé dos outros meninos começava a hiperventilar e desmaiava.
os pais, cansados de tantos médicos e exames e análises, haviam decidido guardá-lo ali.. escondido do mundo. só os olhos, brilhantes e azuis, o denunciava à vida. contara-me ainda a tia que, nas alturas das crises, o menino, diziam as criadas do palacete, ficava longos, intermináveis períodos, prostrado na cama de olhos fixos no teto a transpirar. não me lembro de alguma vez não ter isto os olhos azuis, brilhantes, atrás dos vidros. talvez o dono daqueles meus olhos tão estranhos e inquietantes fosse o menino de poderes visionários. talvez. mas não me lembro da ausência dos olhos nos dias l em que passava por ali. e foram tantos. foram, aliás, todos.
mas se não eram dele, de quem seriam? os meus olhos tinham de ter um "dono". eram tão reais e tão cheios de paixão. além do brilho.
um dia, perguntei à minha tia sobre o que acontecera àquela criança. contou-me que era um mistério. que, a certa altura, os pais tinham pegado na criança, e abandonado o palacete. os criados acabaram por desistir do regresso dos patrões.
nunca mais ninguém ouvira falar deles. e dele.
eu, nunca me conformei com esta(s) ausência(s) e, por isso, todos os dias passo por ali. continuo também a visitar a tia, cada vez mais ciosa do seu tempo passado e fechada a devaneios sequer poéticos. como eu gostava de poder ouvi-la falar do menino. daquele que desaparecera.
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