quarta-feira, 25 de novembro de 2020

a varanda


-  não faças isso, papá..., dizia eu já com a voz já tão fraca. mas era ele quem precisava de ajuda. e era ele que, uma vez mais, fizera o que não deveria ter feito. 

desta vez, subira ao quarto deles. eram as saudades, eu sabia. sabíamos. mas não podia, ou melhor, não devia. e esta diferença entre não dever e não poder era cada vez, no caso do papá, mais "strong". sim, em inglês, já que, na língua lusa, a fortitude não exprime essa capacidade de não deixar de se fazer o que não se pode, quando estão em causa os cheiros, as memórias, a nostalgia de uma vida tão vivida a dois. e que tinha sido a deles. por isso, eu percebi tão bem aquela sua necessidade de subir as escadas quando já não devia nem podia.

ainda pensáramos, depois de tudo acontecer, em mudar todo o quarto para o rés do chão. havia espaço para isso. mas, e as paredes? e a varanda? e a poltrona da mãe perto das portadas e quase escondida pelas cortinas brancas? as de renda de que a mãe gostava tanto...como se sentia bem naquelas tardes soalheiras a olhar lá para fora por detrás dos vidros. aquela varanda era o "ex-libris" da casa. do quarto, deles. no rés do chão não havia varandas, só janelas. portanto, não pudera ser feita a mudança. nem pensar! 

- ajuda-me, filha,... gritava ele, apesar de tudo, e numa voz quase perdida no silêncio da casa. esmorecia. estaria perto o último suspiro... talvez... mas não, não podia ser. eu não queria, eu não estava preparada para, de repente, ser só eu. 

fora a mamã há tão pouco tempo. um ano, que saudades!...

habituara-me a ter, agora, todos os dias, aquela presença já tão fraca, débil, e tão dependente de mim, até dos meus passos e gestos. 

inicialmente, não fora fácil. mas tudo se vive e decorre com o tempo. e tudo começa também a ser mais fácil. tal como me era fácil ter voltado àquela casa, àquelas paredes, àquele mundo tão deles e que sempre partilharam connosco, mesmo quando o tempo fugia pelas horas das noites em que o meu pai não estava ou a mãe chegava mais tarde daquelas reuniões intermináveis do banco. "- era o mundo novo." dizia ela que andava a preparar-nos o caminho.

nunca consegui perceber muito bem o que teria eu preferido ter se me tivessem dado a escolher: a mãe e o pai em casa ou ambos a trabalhar, um no banco, outro no bar, em prol do meu futuro... entretanto, deixei de pensar nisso. agora, gostaria que ambos estivessem aqui. comigo, no aconchego destas paredes, desta casa que sempre nos guardou a mim, irmãos e primos, principalmente, no jardim, onde a brincadeira estava sempre rodeada de bichos e árvores plantadas pelo avô. agora, muitas delas desaparecidas em prol de uma melhoria que tanto tem tardado a surgir.

era dali que íamos ao areal. eu e os primos. mas também outras pessoas. no verão, éramos muitos. as nossas gargalhadas eram sempre muito sonoras e felizes. gostava tanto. 

hoje, e naquele preciso momento, eu precisava em paz. precisava do meu pai. do pai que tive sempre, ali, à minha espera. 

- papá, fale comigo...

caíra ao subir as escadas e ali ficara, encaixado, quase sem vida. estávamos à espera dos bombeiros. e eu só me perguntava, em silêncio, porque queria guardá-lo para mim mais tempo:

- Ó pai, por que razão não conseguiste esquecer as saudades....

14.11.2020

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